O que preciso saber sobre a tributação de heranças e doações de bens no exterior
Por Patrícia Moreira Bis, advogada do Contencioso Tributário na Andrade Silva Advogados
O Supremo Tribunal Federal certificou, em 24/05/2022, o trânsito em julgado, do acórdão que tratou da questão constitucional suscitada no Leading Case (Recurso Extraordinário n° 851.108 – Tema 825 da Repercussão Geral – de relatoria do Ministro Dias Toffoli), a respeito da inconstitucionalidade da cobrança do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), envolvendo heranças e doações realizadas no exterior.
Em síntese, nos termos do art. 155, §1°, III, é possível a instituição do ITCMD nos casos em que o falecido, tecnicamente chamado de de cujus, era residente ou domiciliado no exterior ou com inventário processado no exterior, e quando se tratar de doador com domicílio ou residência no exterior. Contudo, conforme a Constituição Federal, tal instituição exige a prévia edição de Lei Complementar Federal, o que ainda não ocorreu.
Veja-se o dispositivo constitucional:
Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
I – transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos; […]
§ 1º O imposto previsto no inciso I:
III – terá competência para sua instituição regulada por
lei complementar:
a) se o doador tiver domicílio ou residência no exterior;
b) se o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior;
A discussão teve origem na Lei nº 10.705, do Estado de São Paulo, que previa a incidência de ITCMD sobre doação/transmissão de bens localizados no exterior para pessoa localizada no Estado de São Paulo. Uma brasileira herdou do pai um imóvel localizado na Itália e, por essa razão, o Fisco Estadual exigiu o recolhimento da alíquota de 4% do referido imposto. Via de consequência, a herdeira ingressou na justiça para afastar o recolhimento.
O Tribunal de Justiça de São Paulo acolheu a argumentação da contribuinte e decidiu que o ITCMD não incide sobre bens localizados no exterior, por falta de previsão legal, uma vez que não existe Lei Complementar federal que regule a matéria. Nesse sentido, se a Constituição Federal atribui ao Congresso Nacional a competência para a instituição da Lei, não poderia o Estado de São Paulo substituir o legislador federal.
O tema foi levado ao STF pela Procuradoria do Estado de São Paulo.
O Supremo, por maioria, negou provimento ao Recurso Extraordinário da Fazenda Estadual, aprovando, contudo, proposta de modulação dos efeitos da decisão.
Destacam-se alguns pontos do citado acórdão:
Fl. 22 do acórdão
No caso do ITCMD, o mecanismo para se evitar potencial conflito federativo entre os entes da federação foi acionado pelo próprio constituinte, ao exigir, no inciso III do referido § 1º, a edição de lei complementar para regular a competência e a instituição do ITCMD quando o doador tiver domicílio ou residência no exterior ou o de cujus possuir bens, tiver sido residente ou domiciliado ou tiver seu inventário processado no exterior. Nessa hipótese, é a lei complementar que, “desempenhando a função que lhe foi atribuída pelo art. 146, I, da Magna Carta, vai disciplinar o assunto, dando critérios para que se saiba, com exatidão, a qual unidade federativa compete o imposto em tela”, nos dizeres de Roque Antonio Carraza.
Fs.30 do acórdão
Todavia, embora a Constituição de 1988 atribua aos estados a competência para a instituição do ITCMD (art. 155, I), também a limita, ao estabelecer que cabe a lei complementar – e não a leis estaduais – regular tal competência em relação aos casos em que o “de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve seu inventário processado no exterior” (art. 155, § 1º, III, b). Em outras palavras, a Constituição de 1988 não concedeu aos estados a competência para instituir o ITCMD nessa hipótese, pois tal competência deve ser regulada por lei complementar.
Neste ponto, importante ressaltar que a controvérsia estabelecida nos autos do citado Recurso Extraordinário diz respeito ao disposto Art.155, § 1º, Inciso III, da Constituição Federal.
Ou seja, são dois requisitos inafastáveis para que seja aplicada a decisão STF, de modo a se afastar a exigência do ITCD: (i) o doador deve, obrigatoriamente, ter domicílio ou residência no exterior ou (ii) o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior.
Assim, nos casos em que residentes no Brasil possuam bens no exterior, a doação ou transmissão causa mortis dos bens em questão estará sujeita a incidência do ITCMD, nos termos do que previsto nas legislações estaduais vigentes.
Acerca da modulação de efeitos, restou decidido que a decisão só passou a produzir efeitos a partir de 20/04/2021, data da publicação do acórdão, ressalvando as ações judiciais propostas até a citada data.
Fls.31 do acórdão
Tenho, para mim, ser o caso de se modularem os efeitos da decisão. Como se sabe, não só o Estado de São Paulo, mas também diversas outras unidades federadas já editaram leis prevendo a cobrança do ITCMD nas hipóteses referidas no art. 155, § 1º, III, da Constituição Federal. Só para citar algumas leis, vide, por exemplo: no Estado do Rio de Janeiro, as Leis nºs 7.174/15 e 1.427/89; no Estado de Minas Gerais, a Lei nº 14.941/03; no Distrito Federal, a Lei nº 3.804/06.
Fl.35 do acórdão
“10. Proponho a atribuição à decisão de eficácia ex nunc a contar da publicação do acórdão em questão, ressalvando as ações judiciais pendentes de conclusão até o mesmo momento, nas quais se discuta: (1) a qual Estado o contribuinte deve efetuar o pagamento do ITCMD, considerando a ocorrência de bitributação; e (2) a validade da cobrança desse imposto, não tendo sido pago anteriormente. 11. Faço ainda um apelo ao Poder Legislativo para que supra tal omissão e discipline a matéria do art. 155, § 1º, III, da Constituição, por meio de lei complementar. Não posso deixar de destacar que estamos diante de uma situação de clara tensão entre a Justiça tributária e a reserva de lei, que demanda a atuação do legislador.”
Desta forma, conclui-se o seguinte:
É vedado aos estados e ao Distrito Federal instituir o ITCMD nas hipóteses referidas no art. 155, § 1º, III, da Constituição Federal sem a intervenção da lei complementar exigida pelo referido dispositivo constitucional.
O julgamento se aplica apenas aos casos em que o doador tenha domicílio ou residência no exterior ou o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior.
Os dispositivos das leis estaduais, editados com a previsão de cobrança do ITCMD nas hipóteses referidas no art. 155, § 1º, III, da Constituição Federal, se tornaram sem efeitos a partir de 20/04/2021.
A partir de 20/04/2021 as transmissões causa mortis e doações de bens no exterior, na forma Art.155, § 1º, Inciso III, da CR/88, passaram a não sofrer a incidência do ITCMD.
Não se aplica a modulação de efeitos aos contribuintes que ajuizaram ações até 20/04/2021, discutindo (i) a qual Estado o contribuinte deve efetuar o pagamento do ITCMD, considerando a ocorrência de bitributação; e (ii) a validade da cobrança desse imposto, não tendo sido pago anteriormente.
A decisão do STF não abrange as doações de bens no exterior, quando o doador for residente no Brasil, sujeitas portanto ao ITCD, nos limites das respectivas legislações estaduais.
Ficou alguma dúvida? Conte com a equipe tributária da Andrade Silva Advogados.